Brasil Luminoso
Brasil Luminoso
AFETO
É por isso que aqui gostamos de chamego, queremos um xodó, pedimos cafuné [...]
O afeto é um traço muito marcante da brasilidade. Existe algo em nós que facilita o contato humano, e que encanta quem nos visita. Desde as origens, somos conhecidos por nos misturarmos afetivamente.
É por isso que aqui gostamos de chamego, queremos um xodó, pedimos cafuné – para citar três palavras de origem incerta, possivelmente africana, que resistiram amorosamente pelos séculos, mesmo em meio a tanta violência.
Porque o fato de ser um país afetuoso não implica que não seja também um país brutal. Essa contradição, aliás, ficou marcada no núcleo das células deste povo, como descobriu o projeto “DNA do Brasil”, comandado pela geneticista Lygia da Veiga Pereira, da USP. O projeto está sequenciando o material genético de milhares de brasileiros, de todas as origens. O que eles perceberam é que uma parte enorme da população brasileira descende de pais europeus e mães negras e indígenas.
Está lá, gravado nas moléculas que compõem o âmago daquilo que somos, a evidência do caráter desigual e muitas vezes violento que resultou na miscigenação que nos caracteriza. Quantos desses genes chegaram a nós por causa de histórias de amor, e quantos por causa de histórias de estupros? Quantos aliás por histórias que continham um pouco das duas coisas: afeto e violência?
Olhar para o lado luminoso dessa história sem perder de vista o lado sombrio implica em valorizar a solidariedade, a generosidade, o respeito, a tolerância, a paixão, o senso de humor, a sensualidade, tendo a natureza acolhedora como cenário, na relativa privacidade da rede.
Rede, aliás, é onde tantos dos nossos ancestrais foram embalados. As relações afetuosas da infância perduram no imaginário da alma brasileira. Reverberam quando a mãe oferece um bolinho, quando convidamos alguém para tomar um cafezinho, tentamos apaziguar alguém com uma cervejinha. Colocamos o sufixo -inho em qualquer palavra, mas não com a intenção de diminuí-la, como preconiza a gramática. Nosso diminutivo serve para acrescentar carinho às ações, às relações, às decisões…
Outro símbolo deste afeto são as cirandas, onde “juntamos mãos com mãos e formamos uma roda”, nas palavras de Lia de Itamaracá, lenda viva que há décadas gira sobre a areia da praia pernambucana.
Veja quanto afeto e alegria numa pessoa só.
Ainda que este afeto resista em nossa cultura popular, ele tem sido sistematicamente oprimido e diminuído ao longo da história.
Quando nossa República foi fundada, em 1889, com o fim do Império, decidiu-se gravar no centro de nossa bandeira uma frase inspirada no lema positivista, corrente filosófica que estava na moda: “o amor por princípio; a ordem por base; o progresso por fim”. A história não registrou a razão da decisão de tirar da bandeira o amor, focando só na ordem e no progresso. Não sabemos se algum inimigo do amor justificou racionalmente sua supressão, ou se foi uma decisão de um artista para fazer a frase caber no espaço reservado. O fato é que, na fundação da nação, na hora de confeccionar seu símbolo máximo, decidiu-se institucionalmente negar ao afeto sua condição de elemento formador do país.
Foi para reparar esse erro que, em 2018, um grupo de cidadãos projetou a bandeira com a palavra amor no peito do Cristo Redentor.
Se não houver amor no centro do Brasil, este país não faz sentido – e, sem sentido, não haverá ordem, nem muito menos progresso.
Alma vai além de tudo que o nosso mundo ousa perceber
Casa cheia de coragem, Vida
Todo afeto que há no meu ser
Te quero ver, Te quero ser
Alma
Trecho de Ânima,
Milton Nascimento.