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IRREVERÊNCIA

“O Brasil é feito por nós.
Está na hora de desatar esses nós.”

Âncora 1

A frase é de Barão de Itararé, escritor e humorista gaúcho, que nunca foi barão nem vivia em Itararé. Ele adotou o título de nobreza que não tinha como “homenagem à batalha que não houve” – a batalha de Itararé, que encerraria com sangue a revolução de 1930. Acabou que não houve sangue: só um acordão em que se tentou acomodar todo mundo envolvido em bons cargos.

Diante da recorrência desses acordões que não nos levam em conta, Irreverência é um outro jeito de resistir. É a atitude de não se curvar a uma autoridade que busca impor a sua vontade. Um símbolo dessa irreverência é o malandro clássico, embora se diga que ele nem existe mais, que “aposentou a navalha… mora lá longe e chacoalha num trem da Central”. Como já disse Chico Buarque.

 

Naturalmente, alguém pode questionar que a irreverência seja uma virtude. Pode ser. Mas, como bem lembrou o rabino brasileiro Nilton Bonder, “a alma é imoral”, e, portanto, trair o presente que herdamos do passado é a maneira de sermos leais ao futuro com que nossa alma sonha.

Bonder diz:

“Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Este olhar é o da alma.”
(A alma imoral)

Irreverência é sonhar com uma manhã de sol no meio da tempestade, como nos mostrou Oswald de Andrade:

"Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português."

Abaporu é outro exemplo da irreverência modernista brasileira, que, ao subverter a noção oficial que se instaurava em sua época, se atreveu a inverter a noção de que a mente deve prevalecer sobre todo o resto.

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A irreverência é uma afronta ao establishment, ao poder e às regras que as instituições públicas e privadas impõem para nos controlar. Faz séculos que ela é castigada, mas chibatada nenhuma a calou, só tornou-a mais dissimulada. Essa subversão pode ser encontrada aos montes nos nossos arquivos de marchinhas de carnaval, cordéis de repentistas, letras de pagode e rimas de  rap. 

É o que nos mostra Raimundo Santa Helena, um dos cordelistas mais acintosos em sua afronta:

CARTILHA DO POVO

Ninguém nasceu neste mundo

Pra sofrer e virar Santo

Deus nos fez para gozar

Mais do que derramar pranto

Mas na panela do povo

Só tem farofa de ovo

Quando almoço não janto

E todo trabalhador

Ao teto vai ter direito

Um salário compatível

Pelo que faz ou foi feito

Quem lavrar a terra é dono

Não haverá abandono

Para quem tiver defeito.

Contestação não é crime

Onde há Democracia

Só ao cidadão pertence

A sua soberania.

No poder coercitivo

Jesus foi subversivo

Na versão da tirania.

Eu sou dono do meu passe

Faço arte sem patrão

Só quem tem capacidade

Deve ser oposição

Porque lutar pelos fracos

É tatear nos buracos

Na densa escuridão.

 

Se a desobediência civil de Gandhi ancorava-se em virtudes indianas como a introspecção e a reverência ao sagrado, o jeito brasileiro de ser desobediente é com irreverência, alegria e criatividade. Como faz a Igreja “Deus é Humor –  a seita que dói menos”, que canonizou Oswald de Andrade, Chacrinha e Dercy Gonçalves. 

Precisamos mesmo de muita devoção a esses santos, para que eles nos ajudem a operar o milagre de fazer-nos rir de nós mesmos, a mais profunda e necessária das gozações.

E, se não for suficiente… Bom, vale lembrar novamente do Barão de Itararé, que escreveu: “De onde menos se espera, daí é que não sai nada.” O que podemos então esperar de nós, se desatarmos de vez estes nossos nós?

Outras referências sobre a Irreverência

Veja um trecho do documentário sobre Chacrinha:

Dercy Gonçalves deixou sua marca na história da arte, do humor e da televisão brasileiros por levar às últimas consequências este nosso senso de irreverência. 

A Mangueira em 2019, que soube responder ao nosso próprio autoritarismo para reafirmar a beleza anárquica da nossa mestiçagem.

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SENSO DE COMUNHÃO
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