Brasil Luminoso
Brasil Luminoso
IRREVERÊNCIA
“O Brasil é feito por nós.
Está na hora de desatar esses nós.”
Diante da recorrência desses acordões que não nos levam em conta, Irreverência é um outro jeito de resistir. É a atitude de não se curvar a uma autoridade que busca impor a sua vontade. Um símbolo dessa irreverência é o malandro clássico, embora se diga que ele nem existe mais, que “aposentou a navalha… mora lá longe e chacoalha num trem da Central”. Como já disse Chico Buarque.
Naturalmente, alguém pode questionar que a irreverência seja uma virtude. Pode ser. Mas, como bem lembrou o rabino brasileiro Nilton Bonder, “a alma é imoral”, e, portanto, trair o presente que herdamos do passado é a maneira de sermos leais ao futuro com que nossa alma sonha.
Bonder diz:
“Há um olhar que sabe discernir o certo do errado e o errado do certo. Há um olhar que enxerga quando a obediência significa desrespeito e a desobediência representa respeito. Há um olhar que reconhece os curtos caminhos longos e os longos caminhos curtos. Há um olhar que desnuda, que não hesita em afirmar que existem fidelidades perversas e traições de grande lealdade. Este olhar é o da alma.”
(A alma imoral)
Irreverência é sonhar com uma manhã de sol no meio da tempestade, como nos mostrou Oswald de Andrade:
"Quando o português chegou
Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português."
Abaporu é outro exemplo da irreverência modernista brasileira, que, ao subverter a noção oficial que se instaurava em sua época, se atreveu a inverter a noção de que a mente deve prevalecer sobre todo o resto.
A irreverência é uma afronta ao establishment, ao poder e às regras que as instituições públicas e privadas impõem para nos controlar. Faz séculos que ela é castigada, mas chibatada nenhuma a calou, só tornou-a mais dissimulada. Essa subversão pode ser encontrada aos montes nos nossos arquivos de marchinhas de carnaval, cordéis de repentistas, letras de pagode e rimas de rap.
É o que nos mostra Raimundo Santa Helena, um dos cordelistas mais acintosos em sua afronta:
CARTILHA DO POVO
Ninguém nasceu neste mundo
Pra sofrer e virar Santo
Deus nos fez para gozar
Mais do que derramar pranto
Mas na panela do povo
Só tem farofa de ovo
Quando almoço não janto
E todo trabalhador
Ao teto vai ter direito
Um salário compatível
Pelo que faz ou foi feito
Quem lavrar a terra é dono
Não haverá abandono
Para quem tiver defeito.
Contestação não é crime
Onde há Democracia
Só ao cidadão pertence
A sua soberania.
No poder coercitivo
Jesus foi subversivo
Na versão da tirania.
Eu sou dono do meu passe
Faço arte sem patrão
Só quem tem capacidade
Deve ser oposição
Porque lutar pelos fracos
É tatear nos buracos
Na densa escuridão.
Se a desobediência civil de Gandhi ancorava-se em virtudes indianas como a introspecção e a reverência ao sagrado, o jeito brasileiro de ser desobediente é com irreverência, alegria e criatividade. Como faz a Igreja “Deus é Humor – a seita que dói menos”, que canonizou Oswald de Andrade, Chacrinha e Dercy Gonçalves.
Precisamos mesmo de muita devoção a esses santos, para que eles nos ajudem a operar o milagre de fazer-nos rir de nós mesmos, a mais profunda e necessária das gozações.
E, se não for suficiente… Bom, vale lembrar novamente do Barão de Itararé, que escreveu: “De onde menos se espera, daí é que não sai nada.” O que podemos então esperar de nós, se desatarmos de vez estes nossos nós?
Outras referências sobre a Irreverência
Veja um trecho do documentário sobre Chacrinha:
Dercy Gonçalves deixou sua marca na história da arte, do humor e da televisão brasileiros por levar às últimas consequências este nosso senso de irreverência.
A Mangueira em 2019, que soube responder ao nosso próprio autoritarismo para reafirmar a beleza anárquica da nossa mestiçagem.